28.9.04

Contágio (II)

A água corria no ar, desbravando novos caminhos até à terra. Corria-me pela face, fresca, e abria sulcos no meu peito. Jaziam poças reluzentes pela paisagem encharcada, e o sol cobarde não se mostrava. Doces coisas que eu posso ter...
Agora eram dias, anos, éons, passados num microsegundo pelo anfiteatro dos meus olhos: novos mundos, novos sóis, mal vivendo no tempo ínfimo que era o seu. O infinito gritou por espaço e eu ouvi tudo...
A folha demorou a chegar ao solo: prolongou extasiada a sua viagem nos braços do vento e tombou de cansada no lençol amarelo que cobria o chão. Havia milhões, e formavam um tapete compacto que estalava sob os meus pés. Caminhei por entre a névoa, com o odor do Outono nos sentidos. Ela estava lá, quase transparente, branca no branco que a envolvia. Tomei-a nos braços e chamei-lhe minha. As paredes ergueram-se à nossa volta e o sopro quente da chama de uma lareira afagou o ar da sala.
Abriram-se as portas do tempo: passaram os frades e desfilaram as tropas, mostraram-se as strip-teasers, explodiram as galáxias e suicidou-se o amor. Barcos de rodas à popa, sorvetes de limão, crepúsculos vermelhos, cobaias de laboratório e almirantes falhados formaram um caleidoscópio que partiu em estilhas e serpenteou entre as moléculas de compostos conhecidos e desconhecidos, de ti e de mim.
Oh, que bom é estar morto...

""O Livro dos Mortos" - Eric Landenburg


Quando a sessão acabou já Ilia e Lars tinham chegado. Vinham acompanhados por uma mulher franzina que eu não conhecia.
- Olá Eveready! A sessão foi boa?
Respondi a Ilia com um encolher de ombros.
- Ela precisa de uma sessão, Eveready. Roubaram-lhe o swapper.
- Vendeu-o para comer, na melhor das hipóteses. Na pior, vendeu-o para comprar qualquer outro tipo de droga.
- Não sejas assim, Gerd. Ela precisa.
- Por mim...
Dei o swapper a Lars que o entregou à mulher. Antes de sair ainda vi uma luz vermelha acender-se no pequeno aparelho que ela agarrava numa das mãos.

Só apareci no nosso antro dois dias depois. Vagueei pela cidade, mergulhei na multidão, e não roubei nada. Pelo menos nos próximos tempos não precisava.
Quem não me saía da cabeça era Lési, por isso procurei uma pega vagamente parecida com ela, comprei dois miligramas de multiplicador (a droga dos ricos), e passei muito tempo na mais perfeita abstracção do prazer. No dia seguinte acordara esfomeado e só, na pensão barata onde tinha alugado o quarto.
O multiplicador, ao exacerbar todos os sentidos, deixara-me prostrado... Não era droga em que uma pessoa se viciasse: não se durava muito.

Hás-de acordar os dias,
E eles virão.
E as rugas do teu rosto
Mil ravinas farão por parecer...

Hás-de acordar os dias,
E a tua beleza fugirá
Para sítios donde não se volta.
De que te serve, afinal?

Hás-de acordar os dias,
E eles virão,
E a marca de deus será tua.

Um dia eles virão, bela,
Os dias que tanto temes.
Eles não te admiram...

"Confronto Adiado" - Ragar Timens

Quando penetrei na sala escura não me apercebi da origem dos gemidos, só depois vi Ilia dobrado no canto mais escuro, os olhos muito abertos e a saliva escorrendo-lhe da boca.
- Ilia, o que aconteceu? Onde está Lars?
Não sei como, mas ele entendeu-me. Apontou com uma mão trémula para o outro lado da sala. Só então vi o corpo: estava numa posição estranha, contorcida, e um pequeno charco de sangue marcava o fim de uma vida. Lars tinha no rosto um esgar de terror e os dedos pendiam destroçados, como se tivesse arranhado a parede com todas as suas forças. Aproximei-me mais. Da pequena tomada na sua nuca pendia o cabo do swapper, mas o aparelho não se encontrava à vista. Lars morrera de alguma maneira horrível durante uma sessão, mas eu não imaginava como. O swapper tinha um dispositivo anti-overdose que não permitia excessos. Só se morria por acumulação...
Tentei arrancar qualquer coisa a Ilia, mas os meus esforços goraram-se: apenas murmúrios sem nexo e gemidos de puro medo.
- Anda comigo, Ilia. Vamos sair daqui. – peguei no corpo esquelético com facilidade e levei-o para o beco sujo. Eram quatro horas da tarde de um dia que não começara bem.
Henry Rose era o protótipo do amigo de toda a gente. Fui ter com ele em desespero de causa porque ainda lhe devia dinheiro e não me apetecia pagar-lhe já.
- Eveready, o amigo das carteiras dos outros! E Ilia, o homem que adoptou o swapper! Sejam bem vindos. – o sorriso de orelha a orelha era outra das características de Henry. O mais impressionante era esse sorriso ser mesmo sincero. Henry vencera pela inocência na pior parte da cidade.
- O que é que te aconteceu, Ilia? Pareces pior do que na última vez em que te vi. Aconteceu alguma coisa Ever?
- Acho que sim, mas não me perguntes o quê. Quando cheguei já Ilia estava assim e Lars jazia morto.
- Lars morreu! Mas como, porquê? Ele e Ilia davam-se mal, mas não ao ponto de...
-...Ilia não tem nada a ver com isso. – interrompi-o eu. – O nosso swapper desapareceu. Podes emprestar-lhe o teu para ver se o recompomos?
- Concerteza. Vou já buscá-lo.
A casa de Henry era grande e não era raro ter lá amigos, mas quando chegáramos encontrava-se só.
Reapareceu solícito, com o aparelho na mão e dirigiu-se para Ilia. Ao ver o swapper este encolheu-se e gritou, e quando Henry tentou ligá-lo à máquina quase subiu pela parede nua, balbuciando.
- Não quero morte, Ever. Tira daqui a morte d'Henry!
Afastei Henry com o braço e acerquei-me de Ilia. Tentei aproveitar o instante de maior lucidez para o interrogar.
- Que morte é essa de que falas, Ily?
- A morte, a morte qu'Henry tem na mão.
- Aquilo é apenas um swapper, Ilia, não te faz mal...
- Não, aquilo é morte! Foi morte para Lars!
- Lars morreu com o swapper, é isso que queres dizer Ilia?
Ele parecia querer recolher-se novamente na sua estranha catatonia, depois do perigo se ter afastado. O sim que proferiu já foi arrastado e sem tom.
- Onde vais Ever?
- Vou voltar lá.
- És doido, Eveready? A polícia pode aparecer...
- Tenho de encontrar aquele swapper, Henry. Toma conta de Ilia, eu depois apareço.
Desci as escadas escuras num ápice e tomei a direcção do nosso pardieiro. Na cidade a multidão nunca parava. De noite era apenas um pouco menos compacta, mas o burburinho nunca cessava nas ruas estreitas e malcheirosas. Nunca tinha vivido fora daquele ambiente excepto quando fora "apanhado" por Lési no Reflexo Condicionado. Era o seu mundo, e para sobreviver naquele mundo hostil aprendera a roubar os incautos transeuntes desde muito novo. Existiam piores maneiras de se ganhar a vida...

A sala permanecia imersa numa quietude que parecia anunciar a morte. Lars continuava na sua posição contorcida, qual dançarino envolvido num ritual com a morte. Na parede coberta de inscrições, junto dele, uma mancha de sangue seco seguia as irregularidades do reboco que ele quisera arrancar para fugir sabe-se lá de que horrores. Comecei a vasculhar, o swapper não podia estar longe. Encontrei-o encoberto por um dos pés da cama, debaixo dela, intacto apesar da ausência do cabo de ligação. Não sei se terá sido um ligeiro ranger da porta ou uma ténue corrente de ar que me alertou, mas longos anos de rixas e perseguições da polícia tinham-me tornado cauteloso e rápido.
Mal tivera tempo de me agachar quando a bala provocou um som cavo ao penetrar o colchão. Rolei até ao velho fogão, evitando a segunda bala, e atirei com uma panela na direcção da porta. Não esperei pelos resultados da minha acção. Atirei-me contra as finas ripas de plástico que substituíam os vidros das janelas e um momento depois respirava o ar abafado da estreita viela onde caíra. Desembaracei-me dos plásticos e corri o mais que pude pelo beco sombrio. Não senti impactos nas costas.

Na cidade é impossível sabermos se somos ou não seguidos. Qualquer um das centenas que se acotovelam nas nossas costas pode ser um carrasco que espera pela primeira oportunidade. O único motivo plausível para alguém querer acabar comigo era aquele que estava num dos meus bolsos: um simples swapper, igual a milhões de outros, utilizados por milhões de seres humanos. O que levava comigo tinha de ser especial, e eu sabia de alguém que penetraria os seus segredos, por mais ocultos que se encontrassem.
A lojinha de Martie Kirkegard estava apinhada com uma quantidade incrível de aparelhos electrónicos, a ponto de Martie, um ser pequeno e enfezado, se perder no meio dos gadgets que comprara ou concebera.
- Eveready!! Há quanto tempo, ehm...
- Há tempo demais Martie, mas as pessoas tornaram-se mais cuidadosas com os seus objectos de valor.
Martie sorriu, mostrando os dentes amarelos de mastigador de pó.
- Trago-te aqui uma coisa especial. – disse-lhe, colocando o swapper em cima do pequeno balcão.
- Especial, um swapper? Qual é a piada Eveready?
- Já viste um swapper matar alguém?
- Já vi viciados em swapper morrerem, se é isso que queres dizer.
- Não é isso que quero dizer, Martie. Penso que este swapper matou Lars.
Martie olhou para mim com um rosto interrogativo. Depois pegou no swapper e fez-me sinal para o seguir.
As traseiras da loja eram oficina e lar para Martie e podiam ver-se pelos cantos peúgas velhas e outras peças de roupa misturadas com todo o tipo de componentes electrónicos. Martie sentou-se a uma bancada cheia de instrumentos e dispôs-se a consertar o cabo do swapper. Depois ligou a ficha nova que lhe colocara a uma tomada num dos aparelhos e activou o swapper. No monitor multi-uso à sua frente apareceram formas de onda e gráficos de todo ininteligíveis para mim. Vi Martie franzir o sobrolho.
- Este swapper foi modificado.
- Isso é impossível, ninguém o abriu!
- Não é isso, Ever. A modificação foi feita de um modo mais subtil: foi reprogramado! Vês este gráfico aqui? Estes padrões não são os usuais e não sei que efeitos terão sobre um utilizador. Era melhor destruí-lo...
- Não Martie. Eu hei-de descobrir como é que essa coisa matou Lars. Obrigado por tudo.
- Espera. Toma isto, pode ser-te útil.
Passou-me para as mãos uma arma. Era de um calibre ilegal, idêntica às utilizadas pela polícia.
- Obrigado. Até à vista, Martie.
Voltei para casa de Henry Rose do modo mais discreto possível, navegando na multidão da noite.


A Inocência é o suprasumo da arte de enganar os outros.
"Falsos Provérbios Chineses" - Fang Chu

20.9.04

Contágio (I)

Os dias gritavam por mais luz, naqueles espaços recônditos da cidade inferior. Lars estava com dores de dentes, Ilia não via senão o seu umbigo e eu estava farto de os aturar. Voltei-me para o outro lado disposto a esquecer os gemidos surdos e os murmúrios de drogado, mas o sono não regressou.
- Lars, grande monte de merda, devolve-me o swapper grande porco!
- Preciso mais dele do que tu! Tenho de ir para qualquer lado, não suporto mais esta dor... Tu estás cheio até aos olhos, não precisas do swapper para te ausentares.
- Acabem com isso, cretinos!
Voltei-me para Ilia.
- Lars tem razão e tu podes esperar. – levantei-me e sacudi a poeira da roupa. – Vou tentar obter algum dinheiro por aí. Não me esperem para nada.

Mesmo a luz atenuada pelas nuvens negras que não largavam o céu da cidade era demais para mim. Coloquei os óculos escuros e deixei-me envolver pela multidão compacta e pelos cheiros característicos da cidade imunda.
Entrei num beco para ver o que tinha obtido dos distraídos cidadãos: vários plasticards de nível inferior, algumas senhas de alimentação e setenta e três novos crons. Já podia matar a fome que começava a despertar.
Deixei o que não me interessava no lixo acumulado no beco e voltei à rua principal. Dirigi-me ao "Reflexo Condicionado" quase inconscientemente, meio arrastado pela multidão, mal olhando para os néons multicolores que chamavam clientes para mil e uma lojecas.
- Dá-me qualquer coisa que não custe mais de dez crons, Ned. – Ned era empregado de balcão do Reflexo desde sempre, usando a mesma roupa de sempre, com o mesmo esgar de má vontade que usara desde sempre – Mas qualquer coisa que se coma, não me dês aquilo que serves aos desconhecidos que passam por aqui.
- Vai-te lixar "Eveready".
O que me pôs à frente pouco depois convenceu-me do seu mau humor, mas pelo menos não se mexeu quando a espetei com o garfo.
Só reparei nela algum tempo depois. Observava-me com atenção e comecei a achar-me com sorte: ela era loura, baixa e parecia desfasada daquele ambiente. Quando me preparava para a abordar foi ela que se aproximou de mim.
- Olá.
- Viva. O que faz uma loura verdadeira numa espelunca destas, na pior parte da cidade?
- Existem partes boas?
Sorri-me antes de lhe responder:
- Não recusaria um apartamento em Sundrive...
- Nem você sabe no que se ia meter.
Parou de falar e olhou para mim com o mesmo olhar com que me inspeccionara. Percebi que a conversa de ocasião terminara e que aquilo talvez não fosse mais uma tentativa de engate.
- Ouça, quer ganhar algum dinheiro? – abri mais os olhos – Muito dinheiro?
- O suficiente para uma casa em Sundrive?
- Não abuse da sua sorte...
- Não me diga... Quer dizer que este momento é um momento de sorte para mim?
- Pode apostar a sua vida em como é.
- Está a deixar-me curioso... como é mesmo o seu nome?
- Lési.
- Só Lési?
- Por enquanto, e para si, só Lési. Que raio está você a comer?
- Dez crons de esterco...
- Venha daí. Vamos a um restaurante decente.
- Mas... e os meus dez crons?
- Eu pago isso, venha.
Em momentos vi-me dentro de um aerocarro particular, pairando sobre as ruas apinhadas de Newhope. Há quanto tempo não andava de aerocarro? Resolvi não pensar em nada e gozar a viagem. Enterrei-me mais no estofo macio e olhei para a sombra laranja do sol encerrada na sua prisão de nuvens.
Todas as cidades pareciam iguais: zona boa, para os ricos; zona má, para os pobres e os marginais. Eu era as duas coisas...
Ela mudara de ideias quanto a irmos a um restaurante comer e disse-me apenas que me daria alguma coisa quando chegássemos.
Dirigimo-nos para a zona alta da cidade e o nosso destino parecia ser o aglomerado de arranha-céus do centro comercial. Para alcançar o terraço ultrapassámos a primeira camada de nuvens, estabilizada a escassas centenas de metros de altura, e o sol ganhou um tom mais vivo.
- Em que idade é que sofreu a implantação?
- Não sei bem, acho que tinha uns cinco anos, talvez mais.
Ela virou o rosto para o vidro e ficou a contemplar o panorama que já devia ter visto por mil vezes.
- Que tipo de mulher traz um tipo das sarjetas para um trabalho misterioso sem sequer lhe perguntar o nome? – interroguei-a.
- O tipo de mulher que faz o que lhe ordenam. Para que interessa o seu nome, afinal?
- Gerd Makint, mais conhecido por "Eveready". O seu já sei que é Lési, apenas.
- Chegámos. Venha comigo.
Não notara a aterragem, de tão suave que fora. Automática sem dúvida; aliás, não vira qualquer piloto no veículo.
Os corredores brilhavam com a limpeza quase paranóica que apresentavam. Senti-me como um porco numa gaiola de ouro e apercebi-me do cheiro que exalava. Nunca o tinha notado, na cidade inferior, mas naquele ambiente estava tão deslocado como Lési o estivera no "Reflexo Condicionado".
- Por aqui. – indicou-me.
A sala era vasta e estava ricamente mobilada. Na parede de fundo estava o símbolo da HigherTec. Que podia querer uma corporação com aquela dimensão de um pária como eu?
- Sente-se por aí, eu já venho.
Afundei-me num sofá e esperei. Alguma coisa devia acontecer e entre as espeluncas onde passava o meu tempo e todo aquele luxo sabia o que preferia.

Naquela altura nem percebi muito bem o que eles pretendiam, mas o dinheiro que me ofereceram nem me deixou pensar duas vezes. Agora encontrava-me estendido numa cama de hospital depois da intervenção a que fora submetido. Tinham mexido na minha implantação: cortaram-me a pele da nuca e colocaram um novo chip de controlo do "Dispositivo de Interface Sensorial" dentro da minha cabeça. Passei a noite no hospital da HigherTec por precaução e agora iriam fazer testes ao novo dispositivo.
Quem entrou primeiro no quarto foi Lési:
- Sente-se bem, Makint?
- Não tenho razões para me sentir mal. A cama é fofa, a comida é boa e as enfermeiras são bonitas. E você, Lési, já arranjou um sobrenome? – ela não ligou à minha ironia e voltou-se para o homem que entrara com ela.
- Kurt, acho que podes fazer os testes ao senhor Makint.
Na verdade sentia-me mesmo bem. A não ser o pequeno ardor na nuca, tudo estava bem. Tinha mesmo tomado um banho monumental.
O homem avançou, sentou-se numa cadeira à cabeceira da minha cama e abriu uma pequena mala que continha um aparelhómetro qualquer.
- Vire-se de costas.

A vida é assim, e se um dia é passado no maior dos sonhos, no seguinte os pesadelos voltam reforçados.
Encontrava-me novamente na cidade inferior, depois dos testes terem sido concluídos. Não vira mais Lési desde o momento em que o homem tinha ligado a pequena ficha do aparelhómetro à minha nuca. Ela saíra do quarto e nunca mais a vira. Deram-me o dinheiro, ou antes, deram-me um plasticard de nível médio e despejaram-me de novo na cidade inferior. Habituara-me a dias mais claros...
Meti as mãos nos bolsos do blusão novo, subi a gola para me proteger da chuva fraca que caía e fui procurar Ilia e Lars. Talvez estivessem no Reflexo.

[...] Pelo contrário, Jim Hendle afirma na sua tese "Por um punhado de terra" que todos os acontecimentos que levaram ao confronto foram totalmente encenados por Arturo Tiaggil. A única verdade é que ninguém o sabe, e todas as décadas passadas apenas cobriram mais essa verdade. Os únicos factos passíveis de verificação foram os milhões de mortos e as destruições.
Teve coisas boas, essa última guerra? Acabou com o conceito de nação tradicional e as verdadeiras potências vieram ao de cima e assumiram o poder, para uma era de paz eterna... Na frase anterior, só o que está antes da vírgula é verdade: as grandes empresas assumiram o poder que já lhes pertencia, mas paz eterna?...
As guerras terminaram por uma única razão: deixaram de dar lucro. A guerra abriu falência...
Acreditem-me, não estou a ser cínico. [...]

"Crónica das Guerras do Mundo"
Adrian S. Molnar


Não sou um viciado, mas toda a gente necessita de ajuda de vez em quando e eu não era excepção. Fui buscar o swapper às coisas do Ilia. Não lhe pertencia, de resto. Era de todos. Fora roubado da loja de Deng Fabrizi, um ítalo-chinês que também funcionava como receptador de coisas quentes.
Introduzi a pequena ficha na nuca e programei o swapper para aquilo que desejava naquele momento: estar com Lési-sem-sobrenome algures num sítio limpo. Não seria real, mas só me daria conta disso depois da sessão acabada. O sonho é preferível à realidade sombria...
O swapper tinha algum problema, não arrancara logo. A luz vermelha de avaria acendera-se para se apagar logo a seguir. Depois apareceu Lési e eu não pensei mais nisso.

4.9.04

Em Deus Confiámos - Outubro

Em Outubro,
Quando a vida se despede,
Perdi-te na multidão.
Vi muitos sóis dourados,
Universos incontáveis...
Mas não estavas.
Só a doce ausência de ti,
Que tão amargo me fizera,
Se encontrava.
Em Outubro,
Um de qualquer sol,
Tentei perder-me também.
Não te achei, só me perdi...
Quando Outubro acabar
manda-me, ao menos,
uma rosa de algures
e uma memória de ti.
"Outubro" – Imre Posjian

As recordações são sempre difusas e imprecisas para não magoarem. Tudo o que aconteceu lá, naquele sítio improvável, se adoçara com o tempo e só as coisas boas acontecidas ameaçavam ficar. As minhas queridas memórias...
Era Outubro outra vez. Novamente o tempo que me aguçava a nostalgia das coisas irremediavelmente perdidas nos passados da minha vida.
Era Outubro outra vez. E mais uma vez recordava o acontecido tanto tempo antes (teria sido mesmo antes?). Outubro outra vez, mas aquele algo diferente dos outros, longe que estava da minha mansão luxuosa e da família que me amava.
Londres estava cinzenta, envolta na eterna névoa inglesa, as pessoas enroladas em roupas quentes, apressadas em fugir à chuva miúda que caía. Uma chuva mais intensa tinha trazido outra pessoa para aquela história antiga... E eu estava ali por isso, para ver uma pessoa que me fora muito querida. Fora? Para ela seria, num distante e improvável futuro.
Mil Novecentos e Trinta e Sete fora um ano agitado, com Hitler cada vez mais forte e eu sem nada poder fazer sem que me chamassem louco e me colocassem num manicómio. Os que têm o poder nunca são loucos...
Strand Street tinha um aspecto gasto mas o prédio em que Karen residia era dos que tinha melhor aspecto. Hesitei quando cheguei junto da porta e li o nome junto da campainha de um dos apartamentos do segundo andar: Aaron Tillman. Resolvi não parar naquele ponto depois de vir do outro lado do oceano com aquele objectivo. Queria conhecer Karen.
Alguns momentos depois de tocar à campainha a porta abriu-se. Apresentei-me à criada com a vaga perspectiva de um possível negócio com o dono da casa. Quando entrei alguém me puxou uma perna das calças.
- Quem és tu? – perguntou-me a menina.
Os olhos travessos e alegres levaram-me a outro tempo.

Andámos com os adoradores de sóis durante alguns meses, vagueando através da floresta.
Depois da nossa chegada à velha árvore fizéramos amigos entre os nossos salvadores e passámos a fazer parte da sua comunidade. Eram alegres e livres, Deus não tinha poder para os deter e eles tentavam deter Deus em tudo o que lhes era possível. Eles eram a pouca sensatez que ali existia.
Não se podia afirmar que fôssemos infelizes, mas no espírito de cada um de nós estava o lugar de onde viéramos, trazidos para aquele jogo insano por um Deus louco.
- Jesus Cristo? Não se incomodem, ele ressuscita-o.
- Então sempre tem algum poder!
- De maneira nenhuma! Não é ele que faz isso, quem trata dessas coisas é o reconstrutor, que constrói um clone integral dos que morreram, idêntico até à mais pequena memória esquecida em qualquer canto do cérebro.
- Mas isso não é ressuscitar!
- Meu caro Roger, a única maneira de ressuscitar é essa, não pense mais em mitos e histórias fantasiosas. É tudo falso.
- Thurin, há alguma hipótese de voltarmos para onde pertencemos?
- Existem muitas hipóteses, falta atingirmos uma delas. Se conseguíssemos atingir um portal com um dos nossos túneis temporais, nem que fosse só por momentos... O pior é que eles estão atentos e é muito difícil, se não impossível, conseguir isso. Se lhes pudéssemos desviar as atenções com algo grande, algo que os ocupasse durante algum tempo...
- Há algo que eles temam? – inquiriu Kurt.
- No início de tudo não existia lógica. Quando as leis do nosso universo se começaram a definir, quando tudo estava ainda instável e as hipóteses de uma coisa ser assim ou de outra maneira eram ambas perfeitamente viáveis, antes da lógica do ente e do seu contrário vencer, o universo cometeu um erro, e num dos seus recônditos "lugares" prevaleceu uma lógica tripartida. Cada ente não tinha um oposto mas sim dois, que por sua vez eram também opostos entre si. Dois destes pólos acabaram por se integrar no universo comum, pior ou melhor. Nós somos a terceira parte, o oposto que não encontrou par, apesar de pertencermos intrinsecamente a este universo. O único medo que os atormenta é o medo da aniquilação, o receio de que o universo normal aniquile este tumor e os aniquile também.
- Mas que raio de Deus é este que não...
Thurin interrompeu Karen:
- Deus é o supremo erro, não é uma consequência lógica da existência de um universo. É certo que no princípio o universo beneficiou com ele, mas Deus só actuou porque também lucrava com as acções que empreendeu. Nada é de graça, nem mesmo a esse nível.
- Existirá algum modo de os fazer crer que o momento do ajuste de contas chegou?
- Podemos tentar...
O sorriso de Thurin deu-nos mais que uma mera esperança.

Quando um pranto irrompeu da terra, todos julgámos chegado o momento. Kurt voltou-se para Liharn:
- É agora, Liharn?
- Temo que sim, Kurt, mas não o que estás a pensar. O momento chegou, não a simulação do momento, mas ele próprio.
- O quê? – gritei eu acima do rumor que crescia.
- É o fim que chega.
- Mas então estamos perdidos! – disse Karen.
- Nem sempre o fim significa o terminar de tudo. Sempre pensei que a velha árvore seria a âncora que nos prende ao universo. Talvez seja ela a Verdade, não sei.
A voz de Liharn chegava até nós distorcida e as imagens que nos cercavam pareciam estar loucas.
- Vamos. – disse Liharn, ou pelo menos assim me pareceu, embora o estivesse a ver apontando para o alto, para um céu onde julguei ver árvores dissolvendo-se contra um fundo púrpura que substituía o azul cálido que nos habituáramos a ver.
Flutuámos em direcção à árvore, desajeitadamente, tentando seguir Liharn. Pelo menos julgava vê-lo à nossa frente.
A velha árvore era a única coisa incólume naquele caleidoscópio de formas em que se tornara a floresta. Quando a porta já estava ao nosso alcance uma violenta vibração fez desaparecer o solo debaixo de nós e fez desaparecer Liharn. Vendo bem, todos tínhamos desaparecido.

Não sei se tudo se perdeu, ou se alguma coisa se manteve depois do cataclismo. Eu vi-me sem Karen e sem Kurt, dentro do meu sobretudo castanho numa rua suja de New York, e desde então nada mais me acontecera que me desse qualquer indicação sobre o que se passara.
Sonho? Não, sonho não, ainda guardava ciosamente o relógio e os volumes encadernados que Douglas Lapuane me impingira tanto tempo atrás.
Descobri-me em Outubro de 1928, antes da queda da bolsa e sabendo todos os pormenores sobre ela, porque já a tinha vivido. Não cometi erros desta vez, e fiquei rico, eu e os meus sócios, e sobrevivi à depressão, mas nunca vivi numa pequena quinta algures no Midwest. Nunca vi Douglas Lapuane e no entanto possuía os livros que ele me vendera junto com o relógio que marcava um tempo que eu não sabia qual era.

Despedi-me da pequena Karen e dos seus pais, mortos precocemente anos depois, e despedi-me do meu futuro que nunca tinha acontecido. O dinheiro que depositara numa conta de um banco de Londres em seu nome ser-lhe-ia útil depois da morte dos pais. O tempo não me deixava tê-la.

Trouxera comigo os volumes, lidos e relidos através de todos aqueles anos, recordações do futuro que eu não podia atingir. A seu tempo, provavelmente, Kurt e Karen também teriam aquele género de recordações. Não, Karen destruíra a sua telefonia que transmitia pedaços do futuro, só Kurt possuiria a sua estátua de mil faces.
Folheei "Landscapes and Dignity" pela enésima vez mas uma das reproduções de quadros que o ilustrava captou-me a atenção: parecia algo diferente. Só depois notei a frase escrita num dos cantos da paisagem.
O quadro era simples: mostrava no primeiro plano uma pequena clareira ensolarada com uma velha árvore no seu centro. Ao fundo, transformando em contraluz tudo o que estava próximo do horizonte, o disco vermelho do sol.
A frase era simples: dizia apenas "Por trás do Sol há sempre qualquer coisa – Liharn". Fiquei contente por saber, ao fim de tanto tempo, que nem tudo terminara e que existia alguém que continuava a adorar o sol...

O paquete deslocava-se ao longo do cais, por entre risos e choros, e eu deixei-me levar com ele, deixando para trás Londres mas não Outubro.
Para mim será sempre Outubro na minha alma.


FIM

1.9.04

Em Deus Confiámos - Visitem a Velha Árvore

A idade que tinha nunca era a mesma. Já fora mais velho, não no aspecto, nem na realidade. O tempo é a coisa mais parecida com o sonho que existe. Mas será que existe, o tempo?
Liharn também não sabia, mas utilizava-o para escapar. Desde quando não se lembrava, o tempo para ele deixara de ser a linha bem comportada que era para toda a gente, tornara-se num novelo desalinhado e cada vez mais embaraçado. Para todos eles, os nossos salvadores, deixara de haver o ano passado ou o último Verão e muitas vezes ontem não era mais que uma convenção tácita e subjectiva.
Denominavam-se a si próprios como os adoradores de sóis e eram os descendentes das ovelhas tresmalhadas do rebanho do senhor. Com um raio, não necessito de ser sarcástico para mim mesmo!
A floresta não era um espaço num só tempo, era sim um autêntico formigueiro espalhado pelos tempos, mas de uma coerência tal que se apresentava como normal aos nossos pobres olhos. Fora obra deles, tudo aquilo, e no início o tempo não lhes sobrava.
Só quem sabia os segredos dos túneis podia viajar nos diversos estratos da estranha floresta. Quem o ignorasse, como todos aqueles vis caçadores, estava limitado a um único espaço, a um único tempo, e via a presa fugir-lhe inexplicavelmente, desvanecida e levada para um qualquer limbo.
Os meus olhos não me tinham enganado quando achara a tez morena de Kurt demasiado acentuada para o tempo que ali tínhamos passado. Ele andara vários meses com os adoradores de sóis, no passado e no futuro, acentuando com o sol de ontem o que o sol de hoje tinha iniciado.
- Ainda é muito longe, Kurt?
- Não Karen, penso que já estamos perto. Estás cansada?
Karen encolheu os ombros, resignada à marcha que já durava há alguns dias, repartida pelos tempos que já utilizáramos.
- Para onde vamos, Kurt? – indaguei.
- Para a velha árvore.
- E o que é a velha árvore? – interveio Karen.
- É o elo.
Perante o nosso silêncio expectante, Kurt explicou-se:
- Existe um local comum a todos os tempos, que está presente em todos eles, com a mesma aparência e a mesma verdade. É o elo, e o elo é uma árvore, velha de séculos e pujante de vida. Quando se despedem, eles fazem-no sempre com a mesma frase: visitem a velha árvore. Aí têm a certeza de que se vão encontrar, pois aí o tempo é comum a todos os tempos. Dito de outra forma, o tempo lá não existe. Não se aflijam se não perceberam, eles também não se preocupam muito com todo este assunto.
A luz da tarde era cada vez mais rasante e chegava interceptada por mil troncos e ramos aos nossos olhos cansados. Seria a luz de hoje?

Pobre Roger e pobre Karen, tudo aquilo para eles era uma novidade confusa. Para mim também o fora, alguns meses atrás, quando um deles, surgido do nada, praticamente me tirou das mãos do Arcanjo Gabriel.
Fui-lhes contando tudo durante a viagem até à velha árvore, as fugas e as emboscadas, e a escolha do momento do ataque que lhes proporcionara a fuga.
Liharn não era o chefe, eles não tinham chefe, bastava-lhes terem tido um, há muito tempo. A sua adoração do sol, ou melhor, dos sóis, como eles preferiam dizer, era mais uma vaga filosofia anti-Deus que qualquer crendice eivada de superstições. Os adoradores de sóis não eram selvagens nem primitivos, apenas viviam o tipo de vida que lhes dava a tão necessária liberdade.

- E qual é o papel de Deus no meio de tudo isto? Quem é ele afinal? – perguntou Karen.
Kurt avivou as chamas da fogueira antes de responder. O laranja vivo do fogo dançava-lhe no rosto, dando-lhe mil aparências diferentes.
- Ele é mesmo Deus, aquele Deus que imaginávamos? – reforcei eu.
- Sim e não. Digamos que sem ele o universo não existiria, mas poderia passar muito bem sem ele agora. O contrário também é a verdade: ele nunca poderia ter acontecido se o universo não tivesse nascido; é o velho problema do ovo e da galinha...
- Mas ele é louco! – exclamou Karen.
- Grande coisa... Será que não somos todos loucos? O que é a loucura, senão um estado a que convencionámos dar esse nome? Porque é que os loucos não são os outros? Porque quem lhes chama isso tem o poder. Deus tem o poder, logo não é louco. Os loucos somos nós e os adoradores de sóis, que não nos dobrámos à sua vontade e não desempenhámos correctamente o papel de presas.
- Então ele tem mesmo poderes? – perguntei.
- Sim, mas nada de excepcional. Umas malabarices, umas facilidades na passagem aos bastidores e uma melhor compreensão do cenário, nada mais que isso. Não é o grande senhor que pode dispor do mundo a seu bel-prazer e que tudo muda quando quer. O universo subjugou-o às suas regras e ele não pode fugir a isso.
- E a sua aparência? São todos tão humanos!
- Sabe Karen amiga, o que lhe vou dizer ninguém sabe se é a verdade, mas é uma boa hipótese. – disse Liharn – A realidade é o que nós queremos ver. Não tente encontrar verdades absolutas nesta frase, porque não as há. Provavelmente até é uma refinada mentira, mas não deixa de ser agradável a hipótese de que temos algo a dizer sobre o que nos cerca. Agora vou dormir.
Levantou-se e refugiou-se nas sombras. Ainda o ouvimos dizer:
- Amanhã chegamos lá.

A manhã já era antiga quando chegámos ao que parecia ser uma pequena clareira encantada, tirada a algum conto de fadas que saldara as suas cenas.
A luz parecia mais difusa e todos os contornos mais doces, e no meio estava ela. Parecia estar no sítio ideal, parecia não haver mesmo outro local em que pudesse estar, tão perfeita e singela.
Não a conseguia ver toda, os seus ramos verdes perdiam-se algures numa névoa de luz, uma luz coada pelo tempo que ali era uno. Roger estava como eu, encantado com a doce aparição, só Kurt não mostrava a admiração provocada pelas descobertas.
Uma pequena porta abriu-se no seu tronco baixo e largo, como se fosse uma passagem para algo mais grandioso que aquele Jardim do Éden que mais se assemelhava a um inferno mal disfarçado. Liharn tinha-nos dito: Deus e o Diabo são a mesma pessoa, e o bem e o mal são coisas sem significado para ele...
Aquela árvore parecia Deus, não o outro que tínhamos visto, mas aquele que antes tínhamos imaginado, e ali, naquele local, o bem e o mal pareciam ser o que sempre pensáramos que fossem.
- Karen amiga, visite a velha árvore.