Contágio (II)
A água corria no ar, desbravando novos caminhos até à terra. Corria-me pela face, fresca, e abria sulcos no meu peito. Jaziam poças reluzentes pela paisagem encharcada, e o sol cobarde não se mostrava. Doces coisas que eu posso ter...
Agora eram dias, anos, éons, passados num microsegundo pelo anfiteatro dos meus olhos: novos mundos, novos sóis, mal vivendo no tempo ínfimo que era o seu. O infinito gritou por espaço e eu ouvi tudo...
A folha demorou a chegar ao solo: prolongou extasiada a sua viagem nos braços do vento e tombou de cansada no lençol amarelo que cobria o chão. Havia milhões, e formavam um tapete compacto que estalava sob os meus pés. Caminhei por entre a névoa, com o odor do Outono nos sentidos. Ela estava lá, quase transparente, branca no branco que a envolvia. Tomei-a nos braços e chamei-lhe minha. As paredes ergueram-se à nossa volta e o sopro quente da chama de uma lareira afagou o ar da sala.
Abriram-se as portas do tempo: passaram os frades e desfilaram as tropas, mostraram-se as strip-teasers, explodiram as galáxias e suicidou-se o amor. Barcos de rodas à popa, sorvetes de limão, crepúsculos vermelhos, cobaias de laboratório e almirantes falhados formaram um caleidoscópio que partiu em estilhas e serpenteou entre as moléculas de compostos conhecidos e desconhecidos, de ti e de mim.
Oh, que bom é estar morto...
""O Livro dos Mortos" - Eric Landenburg
Quando a sessão acabou já Ilia e Lars tinham chegado. Vinham acompanhados por uma mulher franzina que eu não conhecia.
- Olá Eveready! A sessão foi boa?
Respondi a Ilia com um encolher de ombros.
- Ela precisa de uma sessão, Eveready. Roubaram-lhe o swapper.
- Vendeu-o para comer, na melhor das hipóteses. Na pior, vendeu-o para comprar qualquer outro tipo de droga.
- Não sejas assim, Gerd. Ela precisa.
- Por mim...
Dei o swapper a Lars que o entregou à mulher. Antes de sair ainda vi uma luz vermelha acender-se no pequeno aparelho que ela agarrava numa das mãos.
Só apareci no nosso antro dois dias depois. Vagueei pela cidade, mergulhei na multidão, e não roubei nada. Pelo menos nos próximos tempos não precisava.
Quem não me saía da cabeça era Lési, por isso procurei uma pega vagamente parecida com ela, comprei dois miligramas de multiplicador (a droga dos ricos), e passei muito tempo na mais perfeita abstracção do prazer. No dia seguinte acordara esfomeado e só, na pensão barata onde tinha alugado o quarto.
O multiplicador, ao exacerbar todos os sentidos, deixara-me prostrado... Não era droga em que uma pessoa se viciasse: não se durava muito.
Hás-de acordar os dias,
E eles virão.
E as rugas do teu rosto
Mil ravinas farão por parecer...
Hás-de acordar os dias,
E a tua beleza fugirá
Para sítios donde não se volta.
De que te serve, afinal?
Hás-de acordar os dias,
E eles virão,
E a marca de deus será tua.
Um dia eles virão, bela,
Os dias que tanto temes.
Eles não te admiram...
"Confronto Adiado" - Ragar Timens
Quando penetrei na sala escura não me apercebi da origem dos gemidos, só depois vi Ilia dobrado no canto mais escuro, os olhos muito abertos e a saliva escorrendo-lhe da boca.
- Ilia, o que aconteceu? Onde está Lars?
Não sei como, mas ele entendeu-me. Apontou com uma mão trémula para o outro lado da sala. Só então vi o corpo: estava numa posição estranha, contorcida, e um pequeno charco de sangue marcava o fim de uma vida. Lars tinha no rosto um esgar de terror e os dedos pendiam destroçados, como se tivesse arranhado a parede com todas as suas forças. Aproximei-me mais. Da pequena tomada na sua nuca pendia o cabo do swapper, mas o aparelho não se encontrava à vista. Lars morrera de alguma maneira horrível durante uma sessão, mas eu não imaginava como. O swapper tinha um dispositivo anti-overdose que não permitia excessos. Só se morria por acumulação...
Tentei arrancar qualquer coisa a Ilia, mas os meus esforços goraram-se: apenas murmúrios sem nexo e gemidos de puro medo.
- Anda comigo, Ilia. Vamos sair daqui. – peguei no corpo esquelético com facilidade e levei-o para o beco sujo. Eram quatro horas da tarde de um dia que não começara bem.
Henry Rose era o protótipo do amigo de toda a gente. Fui ter com ele em desespero de causa porque ainda lhe devia dinheiro e não me apetecia pagar-lhe já.
- Eveready, o amigo das carteiras dos outros! E Ilia, o homem que adoptou o swapper! Sejam bem vindos. – o sorriso de orelha a orelha era outra das características de Henry. O mais impressionante era esse sorriso ser mesmo sincero. Henry vencera pela inocência na pior parte da cidade.
- O que é que te aconteceu, Ilia? Pareces pior do que na última vez em que te vi. Aconteceu alguma coisa Ever?
- Acho que sim, mas não me perguntes o quê. Quando cheguei já Ilia estava assim e Lars jazia morto.
- Lars morreu! Mas como, porquê? Ele e Ilia davam-se mal, mas não ao ponto de...
-...Ilia não tem nada a ver com isso. – interrompi-o eu. – O nosso swapper desapareceu. Podes emprestar-lhe o teu para ver se o recompomos?
- Concerteza. Vou já buscá-lo.
A casa de Henry era grande e não era raro ter lá amigos, mas quando chegáramos encontrava-se só.
Reapareceu solícito, com o aparelho na mão e dirigiu-se para Ilia. Ao ver o swapper este encolheu-se e gritou, e quando Henry tentou ligá-lo à máquina quase subiu pela parede nua, balbuciando.
- Não quero morte, Ever. Tira daqui a morte d'Henry!
Afastei Henry com o braço e acerquei-me de Ilia. Tentei aproveitar o instante de maior lucidez para o interrogar.
- Que morte é essa de que falas, Ily?
- A morte, a morte qu'Henry tem na mão.
- Aquilo é apenas um swapper, Ilia, não te faz mal...
- Não, aquilo é morte! Foi morte para Lars!
- Lars morreu com o swapper, é isso que queres dizer Ilia?
Ele parecia querer recolher-se novamente na sua estranha catatonia, depois do perigo se ter afastado. O sim que proferiu já foi arrastado e sem tom.
- Onde vais Ever?
- Vou voltar lá.
- És doido, Eveready? A polícia pode aparecer...
- Tenho de encontrar aquele swapper, Henry. Toma conta de Ilia, eu depois apareço.
Desci as escadas escuras num ápice e tomei a direcção do nosso pardieiro. Na cidade a multidão nunca parava. De noite era apenas um pouco menos compacta, mas o burburinho nunca cessava nas ruas estreitas e malcheirosas. Nunca tinha vivido fora daquele ambiente excepto quando fora "apanhado" por Lési no Reflexo Condicionado. Era o seu mundo, e para sobreviver naquele mundo hostil aprendera a roubar os incautos transeuntes desde muito novo. Existiam piores maneiras de se ganhar a vida...
A sala permanecia imersa numa quietude que parecia anunciar a morte. Lars continuava na sua posição contorcida, qual dançarino envolvido num ritual com a morte. Na parede coberta de inscrições, junto dele, uma mancha de sangue seco seguia as irregularidades do reboco que ele quisera arrancar para fugir sabe-se lá de que horrores. Comecei a vasculhar, o swapper não podia estar longe. Encontrei-o encoberto por um dos pés da cama, debaixo dela, intacto apesar da ausência do cabo de ligação. Não sei se terá sido um ligeiro ranger da porta ou uma ténue corrente de ar que me alertou, mas longos anos de rixas e perseguições da polícia tinham-me tornado cauteloso e rápido.
Mal tivera tempo de me agachar quando a bala provocou um som cavo ao penetrar o colchão. Rolei até ao velho fogão, evitando a segunda bala, e atirei com uma panela na direcção da porta. Não esperei pelos resultados da minha acção. Atirei-me contra as finas ripas de plástico que substituíam os vidros das janelas e um momento depois respirava o ar abafado da estreita viela onde caíra. Desembaracei-me dos plásticos e corri o mais que pude pelo beco sombrio. Não senti impactos nas costas.
Na cidade é impossível sabermos se somos ou não seguidos. Qualquer um das centenas que se acotovelam nas nossas costas pode ser um carrasco que espera pela primeira oportunidade. O único motivo plausível para alguém querer acabar comigo era aquele que estava num dos meus bolsos: um simples swapper, igual a milhões de outros, utilizados por milhões de seres humanos. O que levava comigo tinha de ser especial, e eu sabia de alguém que penetraria os seus segredos, por mais ocultos que se encontrassem.
A lojinha de Martie Kirkegard estava apinhada com uma quantidade incrível de aparelhos electrónicos, a ponto de Martie, um ser pequeno e enfezado, se perder no meio dos gadgets que comprara ou concebera.
- Eveready!! Há quanto tempo, ehm...
- Há tempo demais Martie, mas as pessoas tornaram-se mais cuidadosas com os seus objectos de valor.
Martie sorriu, mostrando os dentes amarelos de mastigador de pó.
- Trago-te aqui uma coisa especial. – disse-lhe, colocando o swapper em cima do pequeno balcão.
- Especial, um swapper? Qual é a piada Eveready?
- Já viste um swapper matar alguém?
- Já vi viciados em swapper morrerem, se é isso que queres dizer.
- Não é isso que quero dizer, Martie. Penso que este swapper matou Lars.
Martie olhou para mim com um rosto interrogativo. Depois pegou no swapper e fez-me sinal para o seguir.
As traseiras da loja eram oficina e lar para Martie e podiam ver-se pelos cantos peúgas velhas e outras peças de roupa misturadas com todo o tipo de componentes electrónicos. Martie sentou-se a uma bancada cheia de instrumentos e dispôs-se a consertar o cabo do swapper. Depois ligou a ficha nova que lhe colocara a uma tomada num dos aparelhos e activou o swapper. No monitor multi-uso à sua frente apareceram formas de onda e gráficos de todo ininteligíveis para mim. Vi Martie franzir o sobrolho.
- Este swapper foi modificado.
- Isso é impossível, ninguém o abriu!
- Não é isso, Ever. A modificação foi feita de um modo mais subtil: foi reprogramado! Vês este gráfico aqui? Estes padrões não são os usuais e não sei que efeitos terão sobre um utilizador. Era melhor destruí-lo...
- Não Martie. Eu hei-de descobrir como é que essa coisa matou Lars. Obrigado por tudo.
- Espera. Toma isto, pode ser-te útil.
Passou-me para as mãos uma arma. Era de um calibre ilegal, idêntica às utilizadas pela polícia.
- Obrigado. Até à vista, Martie.
Voltei para casa de Henry Rose do modo mais discreto possível, navegando na multidão da noite.
A Inocência é o suprasumo da arte de enganar os outros.
"Falsos Provérbios Chineses" - Fang Chu